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Com mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil é um dos países que mais gera resíduos sólidos – materiais, substâncias e objetos descartados – cuja destinação final deveria receber tratamento com soluções economicamente viáveis, de acordo com a legislação e as tecnologias atualmente disponíveis, mas acabam, ainda em parte, sendo despejados a céu aberto, lançados na rede pública de esgotos ou até queimados.
Entre esses resíduos estão alguns mais complexos, como os de construção civil, hospitalares, radioativos, agrícolas, industriais e de mineração, mas também os domiciliares, oriundos de atividades domésticas em residências urbanas, e os de limpeza urbana, originários da varrição, limpeza de logradouros e vias públicas, classificados como resíduos sólidos urbanos (RSU).
Nas cidades brasileiras, a crescente geração desse tipo de resíduo e as práticas de descarte estabelecidas, aliados ao ainda alto custo de armazenagem, resultaram em volumes crescentes de RSU acumulados e, historicamente, em sérios problemas ambientais e de saúde pública. Ao longo dos anos, a disposição irregular de RSU tem causado a contaminação de solos, cursos d’água e lençóis freáticos, e também doenças como dengue, leishmaniose, leptospirose e esquistossomose, entre outras, cujos vetores encontram nos lixões um ambiente propício para sua disseminação.
Em seu último relatório sobre o assunto, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) destaca que as cidades brasileiras geraram em 2018 cerca de 79 milhões de toneladas de RSU, cuja coleta chegou a 92% desse total, equivalentes a pouco mais de 72 milhões de toneladas, dos quais apenas 43,3 milhões de toneladas, 59,5% do coletado, foi disposto em aterros sanitários. O montante de 29,5 milhões de toneladas de resíduos, 40,5% do total coletado, foi despejado inadequadamente em lixões ou aterros controlados1 e ainda cerca de 6,3 milhões de toneladas geradas anualmente continuam sem ao menos serem coletadas, e seguem sendo depositadas sem controle, mesmo quando a legislação determina a destinação para tratamento e, em último caso, para aterros sanitários.
Embora as tecnologias necessárias para o cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estejam disponíveis no Brasil, os custos e a falta de uma maior integração na gestão dos RSU têm sido apontados por especialistas como os motivos para esse comportamento. Enquanto em países que já resolveram ou estão em vias de solucionar o problema dos RSU não apenas os aterros sanitários mas também incineradores e biodigestores para geração de energia sejam tecnologias bastante comuns, no Brasil, dada à falta de uma gestão unificada de RSU, os desafios permanecem praticamente os mesmos anteriores à PNRS.
RSU no mundo e no Brasil
Segundo o relatório What a Waste 2.0 do Banco Mundial, aproximadamente 2,01 bilhões de toneladas de RSU são geradas anualmente pelo mundo, e espera-se que em 2050 esse número chegue a 3,40 bilhões de toneladas, um aumento de quase 70%. Para minimizar esse impacto, alguns países buscam usar tecnologia e inovação, tendo o tratamento como prioridade na gestão.
A Alemanha, por exemplo, proibiu em 2005 a remessa de resíduos domésticos sem tratamento e industriais para os aterros, e em 2012 aprovou a lei da economia circular, ações que tiveram papel importante para a destinação adequada dos resíduos no país, onde cerca de 13% dos produtos comprados pela indústria já são feitos com matérias-primas recicladas, além de sua cadeia de gestão de resíduos empregar mais de 250 mil pessoas. Já o Japão, com coleta seletiva e reciclagem incentivadas por lei desde 1995, produz garrafas pet com 100% de material reciclado, o que reduziu em 90% o uso de novos plásticos e em 60% as emissões de dióxido de carbono.
Há ainda exemplos de cidades como Estocolmo (Suécia), onde 100% dos domicílios têm coleta seletiva por um sistema de lixeiras conectadas a uma rede de tubos subterrâneos. Um sensor detecta quando a lixeira está cheia, enviando os resíduos por uma rede subterrânea até o local de acumulação, onde são separados e compactados, seguindo para reaproveitamento, compostagem e incineração. Já San Francisco (EUA) implantou programas para reciclagem e compostagem de quase todo o resíduo produzido, introduzindo incentivos econômicos, como menor taxa de lixo para quem faz compostagem, o que fez a cidade reduzir em 12% as emissões de gases de efeito estufa.
No Brasil, após uma discussão de cerca de 20 anos, em meio a uma situação que seguia sem controle, o governo federal promulgou em 2010 a lei 12.305, que estabeleceu a PNRS, marco regulatório que prevê a gestão integrada e o gerenciamento de resíduos sólidos, incluindo originalmente um prazo de quatro anos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, cabendo aos municípios a responsabilidade pelos resíduos gerados em seus territórios. Embora tenha expirado em 2014 o prazo inicial para que os municípios se adequassem à legislação, dados da Abrelpe mostram que mais da metade das cidades do país, algo em torno de 53%, ainda não cumpriram a determinação legal.
Para a reversão desse quadro, é fundamental, na ótica da gestão integrada e do gerenciamento, a adoção de tecnologias que promovam o desenvolvimento sustentável e criem oportunidades para resgatar e elevar o valor incorporado nos resíduos, aproveitando-os antes de chegarem aos aterros.
Setor empresarial
Existem no Brasil empresas que projetam e vendem soluções tecnológicas para a implantação de aterros, gerando ganho de escala e diluição progressiva de custos para sua implantação, além de outras soluções. É o caso da RedeResíduos, que atuando com o conceito de cidades inteligentes recebeu apoio de um programa da Fapesp destinado a pesquisas inovativas em pequenas empresas e desenvolveu um sistema que conecta geradores de resíduos com recicladores, transportadores e empresas de tratamento interessados na obtenção de materiais descartados para reaproveitamento.
Para Francisco Biazini Filho, diretor da empresa, a reciclagem é o caminho mais eficiente para reduzir a quantidade de resíduos que chega aos aterros. “Criamos um sistema de rastreabilidade e telemetria que acompanha desde a origem do resíduo, passando pelo transporte e armazenamento, até a transformação em produto final reciclado”, diz. Todo o monitoramento dos resíduos pode ser feito pela internet e com o uso de smartphones. Para o uso em cidades, a empresa desenvolveu também um sistema de monitoramento ultrassônico de contentores (em uso na cidade de Paulínia, interior paulista) com caçambas e contêineres que sinalizam quando estão cheios, facilitando a logística da coleta, gerando indicadores e métricas voltados ao seu aprimoramento.
De acordo com Jorge Alberto Soares Tenório, pesquisador do Laboratório de Reciclagem, Tratamento de Resíduos e Extração da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), a questão dos RSU em países desenvolvidos têm maior importância, pois significa uma parte do PIB. “Em países de desenvolvimento intermediário, como o Brasil, embora existam muitos aspectos econômicos e sociais envolvidos, ainda não há interesse político em sua expansão”, afirma.
Segundo Tenório, cerca de 90% das tecnologias existentes no mundo para a construção de aterros está disponível no Brasil, mas os custos de implantação continuam altos para a maior parte dos municípios do país. “Do ponto de vista da engenharia, construir um aterro é algo relativamente simples, consolidado há décadas, mas falta gestão integrada das ações”, diz, apontando que a coleta seletiva de resíduos e a destinação desses materiais para reciclagem deveria envolver efetivamente os fabricantes dos produtos. Ele observa, por exemplo, que em São Paulo há coleta seletiva há décadas, mas não há reciclagem no mesmo volume. “É preciso pensar nas ferramentas de gestão para diminuir a geração de resíduos e, consequentemente, o volume destinado aos aterros”.
É o caso, por exemplo, dos descartes eletroeletrônicos, cuja coleta e reciclagem são ainda incipientes no Brasil. “Esse tipo de coleta e tratamento está em pleno desenvolvimento no mundo, pois configura um ganho para as empresas em países em que a política ambiental é mais rígida. Reciclar carros na Europa e no Japão é algo viável, mas no Brasil ainda não, devido a uma regulamentação frágil nesses aspectos”.
Em diversos países, essas atividades fazem parte do custo do produto, ou seja, o fabricante paga pelo destino final desses bens, se responsabilizando pela coleta, destinação e tratamento. “Isso é parte da legislação ambiental”, observa.
Embora os aterros sanitários ainda sejam considerados um método menos dispendioso comparativamente com outras alternativas, mesmo nesses casos existem tecnologias para o aproveitamento dos gases ali emitidos, cuja capacidade de geração varia de acordo com propriedades geológicas, hidrológicas e geotécnicas e fatores bióticos e abióticos. Para isso podem ser usados biorreatores para processar rapidamente resíduos descartados, aumentando a taxa de decomposição, circulação de lixiviado (chorume) e crescimento de micróbios que atuam na decomposição dos resíduos.
Também podem ser usadas microturbinas para, a partir do gás de aterro, gerar e fornecer eletricidade para projetos de pequena escala nas proximidades. Há ainda a possibilidade de uso de tecnologia de célula de combustível, que converte a energia em dióxido de carbono, vapores d’água, calor e eletricidade, armazenando-a em uma célula eletroquímica que pode ser usada em veículos elétricos.
Contudo, outras tecnologias, direcionadas a diferentes situações, etapas e perfis em termos de volume e tipo de resíduos gerados, podem ser usadas em maior escala também no Brasil. Seguem alguns exemplos, com base no estudo Latest technologies of municipal solid waste management in developed and developing countries: A review, publicado no International Journal of Advanced Science and Research em outubro de 2016.
Considerações Finais
O aumento do consumo no país tem gerado um número crescente de resíduos per capita, entre embalagens, componentes e outros. Porém, como insumos industriais, acabam desperdiçados quando descartados sem destinação ambientalmente adequada.
Os prazos revisados da PNRS para as capitais e regiões metropolitanas adequarem a disposição final de seus RSU se encerraram em julho de 2018, e o de municípios com mais de 100 mil habitantes, em julho de 2019. Cidades menores, entre 50 e 100 mil habitantes, têm prazo até julho de 2020, enquanto os municípios com menos de 50 mil habitantes, até julho de 2021.
No entanto, de maneira coletiva, uma gama de municípios grandes e pequenos tem descumprido a legislação, tentando adiar a obrigatoriedade dessas ações, sob alegação feita pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) de que é necessário maior apoio financeiro e suporte técnico por parte do governo federal para o cumprimento integral da política. Recentemente, o texto do novo marco legal do saneamento, ainda a ser sancionado2, incluiu uma nova prorrogação dos prazos para 2021, para capitais e suas regiões metropolitanas, e até 2024, para municípios com menos de 50 mil habitantes.
Destacam-se no texto inúmeras soluções tecnológicas para a resolução da questão da destinação e disposição final dos RSU, porém é evidenciado que os entraves políticos e econômicos inviabilizam a difusão e adoção dessas tecnologias. Portanto, a partir do perfil atual dos RSU no Brasil, conclui-se que são necessários ainda grandes investimentos e uma real coalizão do poder público e do setor privado para se atingir a universalização da destinação adequada dos resíduos sólidos nos próximos anos.
Porém, aspectos como ganhos econômicos não passam ao largo da legislação. A PNRS prevê incentivos fiscais, financeiros e creditícios e repasse dos Fundos Nacionais do Meio Ambiente e de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para o investimento na área, e considera os RSU um novo mercado emergente, ao reconhecer o resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania.
Assim, os custos da destinação e tratamentos dos RSU poderiam ser amenizados pela possibilidade de retorno financeiro, caso sejam consideradas as receitas geradas a partir de seu tratamento. Também seria possível gerar receita por meio da comercialização de materiais recicláveis, dos fertilizantes provenientes de compostagem e da energia produzida no processo de tratamento térmico e de captação do biogás. Além disso, uma gestão eficiente de RSU teria potencial de criar um número significativo de empregos, retirando trabalhadores da informalidade e gerando ganhos socioeconômicos para a sociedade.
SZIGETH, Leonardo. ANTERNOR, Samuel. Resíduos sólidos urbanos no Brasil: desafios tecnológicos, políticos e econômicos. IPEA, 07 de julho de 2020. Disponível em: <Resíduos sólidos urbanos no Brasil: desafios tecnológicos, políticos e econômicos – Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade (ipea.gov.br)>. Acesso em: 21 de setembro de 2022.
- Assista o vídeo completo de Carlucio Baima e Dov Koren debatendo sobre resíduos sólidos no canal da Arqueorede: https://youtu.be/SSUsIM3eGFg